Fazer
voluntariado é fazer mais do que distribuir alimentos. É uma actividade durante
a qual se dá valor à esperança. Constrói sonhos de quem nunca recebeu um abraço
em toda a vida.
Falta um quarto de hora para as 21h00. Estou no
Campo das Cebolas. É quase Verão e está uma noite agradável; não há vento. Ainda
os voluntários do Centro de Apoio ao Sem-Abrigo, C.A.S.A, não se juntaram no
sítio habitual, já ao longe se avistam algumas pessoas que, a passos
determinados e silenciosos, se vão aproximando. São as caras conhecidas de
todos os dias e mais umas quantas novas. O olhar distante do senhor Viegas e o
sorriso tímido, mas inconfundível, do Sérgio deixam transparecer uma
necessidade comum a todo o ser humano; a de ser ouvido por alguém que se
interesse durante alguns minutos. A fila que se forma junto ao automóvel de
Paulo Ferroni, terapeuta na instituição C.A.S.A., é interminável. As
solicitações são muitas.
Os voluntários, depois de se organizarem,
procedem à habitual distribuição de refeições quentes. Há, também, pães com
fiambre e sandes de queijo. Há, ainda, bolos de pastelaria para todos os
gostos.
“Pode
dar-me mais um pãozinho, por favor? É para a minha filha que ainda está a
estudar”, pede uma senhora simpática após já ter recebido o pão a que teve
direito. Olho para a senhora bem constituída e bem apresentada: vejo que os
seus olhos húmidos e entristecidos apelam à minha solidariedade e ao meu
espírito humanitário. Não hesito em oferecer-lhe mais um pão com queijo. “Muito
obrigada, menina”, esboça um enorme sorriso agradecido. Retribuo e sorrio.
Sinto-me feliz por já ter ajudado alguém esta noite. Hoje, o C.A.S.A distribui
refeições quentes e embaladas 365 dias por ano na zona de Lisboa, do Porto, de
Coimbra, de Faro, de Setúbal, de Cascais e na Região Autónoma da Madeira. Em
Portugal já são 1000 as refeições distribuídas todos os dias do ano.
A procura de alimentos não é a única razão pela
qual os sem-abrigo acorrem, invariavelmente, ao Campo das Cebolas, todos os
dias, à mesma hora. “Mais do que fome de alimentos, o sem-abrigo tem fome de
palavras.” Carlos António, 35 anos, exteriorizou um pouco daquilo que sente
quando está em contacto com os sem-abrigo, no momento em que o abordei. É
voluntário há cerca de um mês e meio.
O
encontro de uma palavra amiga, que sabem que vão ter, ou de um abraço caloroso
são dois motivos que levam muitos sem-abrigo ao encontro dos voluntários.
Durante cerca de uma hora e meia podem esquecer-se dos olhares distantes e
indiferentes que recebem durante o dia. É nesta altura que sabem que alguém se
importa, realmente, com eles. Como diria alguém, num tempo indeterminado, a solidão é quando vemos os outros; porém
eles não nos vêem a nós.
“Boa
noite senhor Viegas!” saúda, entusiasticamente, Safira Brás, 20 anos, que já
conhece bem o “Senhor das Anedotas”. Depois de ter pegado na sandes de queijo e
no bolo que, há momentos, lhe oferecemos, o senhor Viegas dá início a mais uma
“sessão” interminável de lengalengas e de anedotas. “Qual é o nome da terra que
também é o nome de um senhor muito, muito, velhinho?”, demoramos imenso tempo a
pensar na resposta. Quase nunca acertamos. A criatividade do senhor moreno é
superior à nossa perspicácia. Sem mais demoras, o senhor de idade avançada,
apressa-se a responder, “Ancião!”. Todos nos rimos e aplaudimos a sua
imaginação fértil. “Ora, “Ancião” é o nome de uma localidade próxima da minha,
Pombal”, diz Ana, 19 anos, orgulhosa por ouvir uma referência à cidade da qual
sente saudades.
“O senhor Viegas é muito interessante: é
inteligente e culto”, afirma Safira, a rapariga morena e de estatura média,
quando questionada acerca da sua opinião
relativamente ao “Senhor das Anedotas”. Ao contrário daquilo que muitos pensam,
a rapariga de vinte anos considera que os sem-abrigo são pessoas “simpáticas e inteligentes”.
No que se refere ao exercício do serviço de voluntariado, a jovem estudante
está certa de que o contacto com uma realidade diferente da sua, fez com que
tivesse crescido, e que se tivesse tornado mais rica e mais consciente de um
mundo do qual faz parte.
“Para mim, mais do que dar, fazer voluntariado é
receber”, afirma Manuela, 43 anos, com um brilho nos olhos castanhos. Na
realidade, fazer voluntariado não é, exclusivamente, sinónimo de distribuir
roupas nem de trocar alimentos. Para a maior parte das pessoas que se reúne em
torno do carro que transporta os alimentos, ouvir um “olá” ou receber um
simples sorriso é ainda mais importante do que receber a sandes ou o bolo que
lhes são oferecidos. Nas palavras de Manuela, “o sem abrigo não tem fome.
Nenhuma das pessoas que está aqui passa mal”. Salienta a importância que têm as
palavras, os gestos ou os sorrisos ou os “dois dedos de conversa” dados pelos
voluntários.
| Depois de o estômago estar saciado, há roupas para distribuir. “Ora, quem quer vestir uma camisa?”, pergunta Paulo ao agarrar uma peça de vestuário de homem. “Tenho aqui umas sapatilhas que devem ser o 40”, afirma o homem careca com um sorriso estampado no rosto. Os sem-abrigo interessados colocam as mãos no ar. Vejo, somente, umas duas ou três. Nem todos estão interessados. Mas a roupa que estava, nem há cinco minutos, nos sacos, já foi completamente distribuída. |
O
voluntariado transforma tanto os que ajudam quanto os que são ajudados. “Assim
que chegamos aqui tornamo-nos, automaticamente, pessoas diferentes. Alteramos
os outros tal como eles nos alteram a nós”. Manuela, missionária e presidente da
instituição de solidariedade social “Consigo Mais”, defende que as pessoas que
entram no voluntariado tendem a ficar mais conscientes de determinados
problemas sociais, mais especificamente, os associados aos sem-abrigo.
Ao participarem em actividades que visam
promover o bem-estar dos que vivem pior, as pessoas sentem que estão a agir bem
e, por isso, sentem-se realizadas consigo próprias. “Esta experiência fez-me
crescer e o voluntariado já faz parte de mim. É algo muito gratificante e que
me faz crescer todos os dias um pouco por dentro”. Actualmente, para além do
serviço de voluntariado com os sem-abrigo, a missionária trabalha no âmbito de
uma instituição que visa promover a sanidade mental e psicológica das pessoas
que requerem tais apoios, mas que não têm recursos financeiros para os cobrir.
Manuela pretende continuar a promover actividades de âmbito social e a dar
sempre um pouco mais de si a quem precisa.
A noite avança a um ritmo insustentável. O céu
escuro toma conta do espaço onde nos encontramos. As pessoas começam a
dispersar-se. Já é tarde; são 22h15. Aos poucos, os voluntários começam a
despedir-se. Cada sem-abrigo segue o seu rumo. Mas, antes de tudo isso há,
ainda, tempo para tirar algumas fotografias. Sou abordada por um sem-abrigo de
origem africana. Não me recordo do seu nome. Pede-me para lhe tirar uma
fotografia. “Com todo o gosto”, respondo. Juntam-se os sem abrigo que ainda não
foram embora e alguns dos voluntários que restam. “Digam ‘cheese’”, o ‘clic’ da
máquina ouve-se e logo a seguir vê-se a luz branca do flash.
As histórias de vida das pessoas que
aqui vêm parar todos os dias são imensas e muito diversificadas. Desde casos de
abandono, a problemas associados ao consumo de álcool e de drogas, passando por
situações de maus-tratos, de desemprego ou de imigração (muitas vezes em
situação ilegal), o que todas as histórias têm em comum é o mesmo fim triste: a rua. Paulo Ferroni,
terapeuta no C.A.S.A. refere que, no que toca aos sem-abrigo, “estas são
pessoas como todos nós; no entanto perderam tudo o que tinham na vida”.
No
que diz respeito a números, segundo dados divulgados pela agência Lusa, e pela
base de dados anunciada pelo governo em Março de 2009, a população sem-abrigo
é 84% masculina. Mais de metade tem entre 30 e 49 anos de idade e 54% tem o
sexto ano de escolaridade.
Não
é só através dos alimentos que distribui que Paulo pretende apoiar quem de si
precisa. Tenta promover o coaching.
Esta actividade surge com o objectivo de mostrar às pessoas que elas sabem
fazer alguma coisa. Ajuda-as a encontrarem o seu próprio caminho e a
valorizarem-se a si e às suas capacidades de trabalho. É através deste programa
que Paulo pretende fazer com que as pessoas não fiquem agarradas ao “ciclo de
dependência” gerado pela comida que lhes é dada.
Tal como Paulo Ferroni, Luís Branco, 52 anos, tem vindo a
desenvolver um projecto de coaching, do
qual é coordenador, há cerca de três anos, “Guerreiros de Luz”. “ O projecto
não tem fins lucrativos e destina-se ao trabalho com os sem-abrigo. Fazemos coaching de modo a tirar as pessoas da
rua e a fazer com que elas voltem a acreditar nas suas capacidades de trabalho.
Queremos indicar-lhes o caminho certo”.
Luís Branco sempre
participou em seminários de desenvolvimento pessoal e o seu percurso no
voluntariado já tem cerca de sete anos. Afirma que, com esta actividade,
aprendeu “a não julgar os sem-abrigo e a desfazer preconceitos que
anteriormente tinha sobre eles”. De facto, os filmes estrangeiros que vê, não
lhe facultam uma visão real dos sem-abrigo. Gosta de estar no terreno e de
poder conviver com pessoas diferentes, mas iguais a si. Acrescenta, com um
sorriso nos lábios, que o voluntariado “é uma actividade muito gratificante
porque, com esta, pode ajudar outras pessoas”.
Ainda no que se refere ao coaching, Paulo Ferroni diz que
“oferecer comida é sempre um meio, nunca um fim em si. É
uma forma de ganharmos confiança com os sem-abrigo para que, mais tarde,
possamos iniciar a terapia”. O terapeuta tem consciência de que é
imprescindível estimular as pessoas e “entrar no seu mundo” para que possam
conversar abertamente acerca das soluções para as tirar da situação difícil em
que se encontram. Afirma, também, que isso só é possível com a força de vontade
de cada um, “é fundamental que as pessoas acreditem no que, de facto, são
capazes de fazer. Nem sempre isso acontece. Mas eu estou aqui para ajudar”.
A terapia
consiste numa “troca por troca”; por prestar um serviço, utilizando as
capacidades de que dispõe, a pessoa recebe aquilo de que precisa. Por vezes, quando não consegue atingir os
objectivos aos quais que se propôs, Paulo pensa, “ao dar comida estou a
perpetuar um ciclo de dependência; muitos acham que a sociedade lhes tem de dar
tudo. Queixam-se quando não temos o que querem, exigem que lhes devíamos dar o
mesmo que outras instituições”. De facto, algumas das pessoas que procuram os
voluntários, não aceitam o que lhes é dado. Querem mais. Mas não é possível;
muitos desconhecem que a instituição não beneficia de apoios por parte do
Estado. “Por vezes pedem água. Só oferecemos comida porque não temos bebidas
para dar”. Os alimentos e as roupas que a instituição para dar são cedidos por
pastelarias e pelos próprios voluntários.
O contacto com as pessoas implica uma inevitável
criação de laços de amizade. Mas, tal como afirma Luís Branco, “é preciso
desligamo-nos das emoções quando estamos aqui. Temos que dar um pouco de nós
sem dar a conhecer os nossos medos e as nossas inseguranças”. Sabe que é bom
criar um ambiente de empatia para ficar a conhecer um pouco mais das histórias dos
sem-abrigo; no entanto, prefere manter uma atitude defensiva. Paulo Ferroni
partilha a mesma opinião. “Evito estabelecer laços fortes para me defender e
para não criar conflitos no seio do ‘grupo’. Algumas pessoas podem começar a
pensar que eu tenho preferências e isso gera um clima hostil”.
Está
na hora de regressar a casa. Não quero dizer “adeus”. Parece que o tempo se
escapa tão depressa, que nunca dá para ouvir as histórias de todas as pessoas
com quem contactamos, durante aquela hora e meia. Quase não há ninguém na rua.
Vou com a sensação de que fui útil. Todos os sem-abrigo “precisam de sentir que
há pessoas que não lhes são indiferentes”. É este o espírito solidário que dá
sentido às terças-feiras à noite dos voluntários do C.A.S.A.




Sem comentários:
Enviar um comentário