domingo, 2 de novembro de 2014

Voluntariado: Uma Missão, Uma Paixão


Fazer voluntariado é fazer mais do que distribuir alimentos. É uma actividade durante a qual se dá valor à esperança. Constrói sonhos de quem nunca recebeu um abraço em toda a vida. 
  
Falta um quarto de hora para as 21h00. Estou no Campo das Cebolas. É quase Verão e está uma noite agradável; não há vento. Ainda os voluntários do Centro de Apoio ao Sem-Abrigo, C.A.S.A, não se juntaram no sítio habitual, já ao longe se avistam algumas pessoas que, a passos determinados e silenciosos, se vão aproximando. São as caras conhecidas de todos os dias e mais umas quantas novas. O olhar distante do senhor Viegas e o sorriso tímido, mas inconfundível, do Sérgio deixam transparecer uma necessidade comum a todo o ser humano; a de ser ouvido por alguém que se interesse durante alguns minutos. A fila que se forma junto ao automóvel de Paulo Ferroni, terapeuta na instituição C.A.S.A., é interminável. As solicitações são muitas. 

Os voluntários, depois de se organizarem, procedem à habitual distribuição de refeições quentes. Há, também, pães com fiambre e sandes de queijo. Há, ainda, bolos de pastelaria para todos os gostos.   
“Pode dar-me mais um pãozinho, por favor? É para a minha filha que ainda está a estudar”, pede uma senhora simpática após já ter recebido o pão a que teve direito. Olho para a senhora bem constituída e bem apresentada: vejo que os seus olhos húmidos e entristecidos apelam à minha solidariedade e ao meu espírito humanitário. Não hesito em oferecer-lhe mais um pão com queijo. “Muito obrigada, menina”, esboça um enorme sorriso agradecido. Retribuo e sorrio. Sinto-me feliz por já ter ajudado alguém esta noite. Hoje, o C.A.S.A distribui refeições quentes e embaladas 365 dias por ano na zona de Lisboa, do Porto, de Coimbra, de Faro, de Setúbal, de Cascais e na Região Autónoma da Madeira. Em Portugal já são 1000 as refeições distribuídas todos os dias do ano. 


A procura de alimentos não é a única razão pela qual os sem-abrigo acorrem, invariavelmente, ao Campo das Cebolas, todos os dias, à mesma hora. “Mais do que fome de alimentos, o sem-abrigo tem fome de palavras.” Carlos António, 35 anos, exteriorizou um pouco daquilo que sente quando está em contacto com os sem-abrigo, no momento em que o abordei. É voluntário há cerca de um mês e meio.                                             

O encontro de uma palavra amiga, que sabem que vão ter, ou de um abraço caloroso são dois motivos que levam muitos sem-abrigo ao encontro dos voluntários. Durante cerca de uma hora e meia podem esquecer-se dos olhares distantes e indiferentes que recebem durante o dia. É nesta altura que sabem que alguém se importa, realmente, com eles. Como diria alguém, num tempo indeterminado, a solidão é quando vemos os outros; porém eles não nos vêem a nós.        

 “Boa noite senhor Viegas!” saúda, entusiasticamente, Safira Brás, 20 anos, que já conhece bem o “Senhor das Anedotas”. Depois de ter pegado na sandes de queijo e no bolo que, há momentos, lhe oferecemos, o senhor Viegas dá início a mais uma “sessão” interminável de lengalengas e de anedotas. “Qual é o nome da terra que também é o nome de um senhor muito, muito, velhinho?”, demoramos imenso tempo a pensar na resposta. Quase nunca acertamos. A criatividade do senhor moreno é superior à nossa perspicácia. Sem mais demoras, o senhor de idade avançada, apressa-se a responder, “Ancião!”. Todos nos rimos e aplaudimos a sua imaginação fértil. “Ora, “Ancião” é o nome de uma localidade próxima da minha, Pombal”, diz Ana, 19 anos, orgulhosa por ouvir uma referência à cidade da qual sente saudades.   

“O senhor Viegas é muito interessante: é inteligente e culto”, afirma Safira, a rapariga morena e de estatura média, quando questionada acerca da sua opinião relativamente ao “Senhor das Anedotas”. Ao contrário daquilo que muitos pensam, a rapariga de vinte anos considera que os sem-abrigo são pessoas “simpáticas e inteligentes”. No que se refere ao exercício do serviço de voluntariado, a jovem estudante está certa de que o contacto com uma realidade diferente da sua, fez com que tivesse crescido, e que se tivesse tornado mais rica e mais consciente de um mundo do qual faz parte.     

“Para mim, mais do que dar, fazer voluntariado é receber”, afirma Manuela, 43 anos, com um brilho nos olhos castanhos. Na realidade, fazer voluntariado não é, exclusivamente, sinónimo de distribuir roupas nem de trocar alimentos. Para a maior parte das pessoas que se reúne em torno do carro que transporta os alimentos, ouvir um “olá” ou receber um simples sorriso é ainda mais importante do que receber a sandes ou o bolo que lhes são oferecidos. Nas palavras de Manuela, “o sem abrigo não tem fome. Nenhuma das pessoas que está aqui passa mal”. Salienta a importância que têm as palavras, os gestos ou os sorrisos ou os “dois dedos de conversa” dados pelos voluntários.    
          
Depois de o estômago estar saciado, há roupas para distribuir. “Ora, quem quer vestir uma camisa?”, pergunta Paulo ao agarrar uma peça de vestuário de homem. “Tenho aqui umas sapatilhas que devem ser o 40”, afirma o homem careca com um sorriso estampado no rosto. Os sem-abrigo interessados colocam as mãos no ar. Vejo, somente, umas duas ou três. Nem todos estão interessados. Mas a roupa que estava, nem há cinco minutos, nos sacos, já foi completamente distribuída.  
                                                
O voluntariado transforma tanto os que ajudam quanto os que são ajudados. “Assim que chegamos aqui tornamo-nos, automaticamente, pessoas diferentes. Alteramos os outros tal como eles nos alteram a nós”. Manuela, missionária e presidente da instituição de solidariedade social “Consigo Mais”, defende que as pessoas que entram no voluntariado tendem a ficar mais conscientes de determinados problemas sociais, mais especificamente, os associados aos sem-abrigo.        

Ao participarem em actividades que visam promover o bem-estar dos que vivem pior, as pessoas sentem que estão a agir bem e, por isso, sentem-se realizadas consigo próprias. “Esta experiência fez-me crescer e o voluntariado já faz parte de mim. É algo muito gratificante e que me faz crescer todos os dias um pouco por dentro”. Actualmente, para além do serviço de voluntariado com os sem-abrigo, a missionária trabalha no âmbito de uma instituição que visa promover a sanidade mental e psicológica das pessoas que requerem tais apoios, mas que não têm recursos financeiros para os cobrir. Manuela pretende continuar a promover actividades de âmbito social e a dar sempre um pouco mais de si a quem precisa.

A noite avança a um ritmo insustentável. O céu escuro toma conta do espaço onde nos encontramos. As pessoas começam a dispersar-se. Já é tarde; são 22h15. Aos poucos, os voluntários começam a despedir-se. Cada sem-abrigo segue o seu rumo. Mas, antes de tudo isso há, ainda, tempo para tirar algumas fotografias. Sou abordada por um sem-abrigo de origem africana. Não me recordo do seu nome. Pede-me para lhe tirar uma fotografia. “Com todo o gosto”, respondo. Juntam-se os sem abrigo que ainda não foram embora e alguns dos voluntários que restam. “Digam ‘cheese’”, o ‘clic’ da máquina ouve-se e logo a seguir vê-se a luz branca do flash.                                          

As histórias de vida das pessoas que aqui vêm parar todos os dias são imensas e muito diversificadas. Desde casos de abandono, a problemas associados ao consumo de álcool e de drogas, passando por situações de maus-tratos, de desemprego ou de imigração (muitas vezes em situação ilegal), o que todas as histórias têm em comum é o mesmo fim triste: a rua. Paulo Ferroni, terapeuta no C.A.S.A. refere que, no que toca aos sem-abrigo, “estas são pessoas como todos nós; no entanto perderam tudo o que tinham na vida”.  

                                     
No que diz respeito a números, segundo dados divulgados pela agência Lusa, e pela base de dados anunciada pelo governo em Março de 2009, a população sem-abrigo é 84% masculina. Mais de metade tem entre 30 e 49 anos de idade e 54% tem o sexto ano de escolaridade.                

Não é só através dos alimentos que distribui que Paulo pretende apoiar quem de si precisa. Tenta promover o coaching. Esta actividade surge com o objectivo de mostrar às pessoas que elas sabem fazer alguma coisa. Ajuda-as a encontrarem o seu próprio caminho e a valorizarem-se a si e às suas capacidades de trabalho. É através deste programa que Paulo pretende fazer com que as pessoas não fiquem agarradas ao “ciclo de dependência” gerado pela comida que lhes é dada.             

Tal como Paulo Ferroni, Luís Branco, 52 anos, tem vindo a desenvolver um projecto de coaching, do qual é coordenador, há cerca de três anos, “Guerreiros de Luz”. “ O projecto não tem fins lucrativos e destina-se ao trabalho com os sem-abrigo. Fazemos coaching de modo a tirar as pessoas da rua e a fazer com que elas voltem a acreditar nas suas capacidades de trabalho. Queremos indicar-lhes o caminho certo”.      
                         
Luís Branco sempre participou em seminários de desenvolvimento pessoal e o seu percurso no voluntariado já tem cerca de sete anos. Afirma que, com esta actividade, aprendeu “a não julgar os sem-abrigo e a desfazer preconceitos que anteriormente tinha sobre eles”. De facto, os filmes estrangeiros que vê, não lhe facultam uma visão real dos sem-abrigo. Gosta de estar no terreno e de poder conviver com pessoas diferentes, mas iguais a si. Acrescenta, com um sorriso nos lábios, que o voluntariado “é uma actividade muito gratificante porque, com esta, pode ajudar outras pessoas”.               

 Ainda no que se refere ao coaching, Paulo Ferroni diz que “oferecer comida é sempre um meio, nunca um fim em si. É uma forma de ganharmos confiança com os sem-abrigo para que, mais tarde, possamos iniciar a terapia”. O terapeuta tem consciência de que é imprescindível estimular as pessoas e “entrar no seu mundo” para que possam conversar abertamente acerca das soluções para as tirar da situação difícil em que se encontram. Afirma, também, que isso só é possível com a força de vontade de cada um, “é fundamental que as pessoas acreditem no que, de facto, são capazes de fazer. Nem sempre isso acontece. Mas eu estou aqui para ajudar”.      

A terapia consiste numa “troca por troca”; por prestar um serviço, utilizando as capacidades de que dispõe, a pessoa recebe aquilo de que precisa.    Por vezes, quando não consegue atingir os objectivos aos quais que se propôs, Paulo pensa, “ao dar comida estou a perpetuar um ciclo de dependência; muitos acham que a sociedade lhes tem de dar tudo. Queixam-se quando não temos o que querem, exigem que lhes devíamos dar o mesmo que outras instituições”. De facto, algumas das pessoas que procuram os voluntários, não aceitam o que lhes é dado. Querem mais. Mas não é possível; muitos desconhecem que a instituição não beneficia de apoios por parte do Estado. “Por vezes pedem água. Só oferecemos comida porque não temos bebidas para dar”. Os alimentos e as roupas que a instituição para dar são cedidos por pastelarias e pelos próprios voluntários.

O contacto com as pessoas implica uma inevitável criação de laços de amizade. Mas, tal como afirma Luís Branco, “é preciso desligamo-nos das emoções quando estamos aqui. Temos que dar um pouco de nós sem dar a conhecer os nossos medos e as nossas inseguranças”. Sabe que é bom criar um ambiente de empatia para ficar a conhecer um pouco mais das histórias dos sem-abrigo; no entanto, prefere manter uma atitude defensiva. Paulo Ferroni partilha a mesma opinião. “Evito estabelecer laços fortes para me defender e para não criar conflitos no seio do ‘grupo’. Algumas pessoas podem começar a pensar que eu tenho preferências e isso gera um clima hostil”.   

Está na hora de regressar a casa. Não quero dizer “adeus”. Parece que o tempo se escapa tão depressa, que nunca dá para ouvir as histórias de todas as pessoas com quem contactamos, durante aquela hora e meia. Quase não há ninguém na rua. Vou com a sensação de que fui útil. Todos os sem-abrigo “precisam de sentir que há pessoas que não lhes são indiferentes”. É este o espírito solidário que dá sentido às terças-feiras à noite dos voluntários do C.A.S.A.

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