domingo, 5 de outubro de 2014

Pêra Rocha: uma apanha que atravessa gerações

Landal, 8h05: “Olh’ó balde” – ouve-se entre os pomares dos cerca de 48 hectares de uma propriedade agrícola situada na freguesia do Landal, concelho do Cadaval. É o sinal de que alguém já encheu um balde com cerca de 60 pêras e já aguarda por um vazio. São os primeiros frutos de um trabalho que começou às 8h em ponto e se prolonga até às 18h. O dia ainda agora começou: vai ter a duração de 9 horas. Acorrem aos pomares pessoas de várias idades: dos 16 aos 70, muitos são aqueles que partilham histórias, riem de piadas e tentam distrair-se para disfarçarem o cansaço associado à actividade. 
  
Virgínia Ventura, 65 anos, é um exemplo de coragem. Apanha peras há mais de 40 anos e ajuda na devasta das árvores durante os meses de junho e julho. Quando é questionada acerca dos motivos que a trazem à apanha da pêra há tanto tempo, admite que “trabalha para ganhar dinheiro”. Já perdeu a conta à quantidade de patrões que teve: “no Cadaval, no Painho, nos Carrinhos, em A-dos-Francos, no Bombarral e no Landal”. 
  
O mais importante na actividade é, assegura, “apanhar a pera com calma para que os pés não se partam”. Admite que, além disso, “o convívio é muito bom” mas que o menos interessante e o mais difícil é “carregar os baldes para os palotes” porque requer um esforço físico superior ao da própria apanha. 


A experiência diz a esta doméstica que há aspetos na apanha que deveriam ser melhorados: um exemplo é a existência de uma plataforma que substituísse os escadotes e que proporcionasse outras condições de segurança. A mesma opinião tem João Vieira, 20 anos, que, pelo segundo ano consecutivo, apanha pêras: “os escadotes são perigosos, muito instáveis e pesados; as pereiras podiam ser podadas para se tornarem um bocadinho mais baixas” de forma que as pessoas não tivessem de se “esticar tanto correndo o risco de cair”. 

Homens e mulheres, rapazes e raparigas distribuem-se em grupos de 4 por cada uma das fileiras. Apanham pêras miúdas e graúdas para um balde enquanto convivem. Depois de colhidos, os frutos são despejados dos baldes para os palotes, com capacidade de cerca de 250 kg. Posteriormente estes são empilhados por um trator para serem transportados para a central de frutas. Aí as pêras são lavadas e calibradas de forma a poderem ser comercializadas: umas seguem para grandes cadeias de supermercados e outras têm como destino países como Inglaterra, França, Brasil, Polónia e Irlanda.
  
José Jaime, 72 anos, é proprietário desta vasta herdade. Há 41 anos explora a enorme extensão de pomares – de maçãs e de pêras. Agricultor desde os 12 anos, altura em que deu os primeiros passos na exploração agrícola com os pais, dedica-se durante o ano inteiro à actividade. É durante o Verão, na altura da poda e da apanha que recebe muitos trabalhadores. Este ano são cerca de 140. “Por vezes vêm os mais novos”, afirma o proprietário, com pena por estar a perder os mais experientes, que se vão reformando. Apesar de reconhecer que o esforço conjunto é fundamental para obter uma boa apanha, sabe que “nem todos são competentes a apanhar pêra”.

Um fruto que prima pela diferença

A hora do almoço aproxima-se a passos largos, e as primeiras quatro horas do dia não demoraram a passar. É altura de recarregar baterias e de aproveitar uma hora de descanso. Está um calor ardente e avizinha-se uma tarde difícil de cinco horas.­ As tarefas são monótonas e repetitivas, mas a recompensa é certa: afinal é no fim do dia de sábado que a semana de trabalho é paga.

André Picoto, 16 anos, faz este trabalho pela primeira vez. Veio até ao Landal motivado por razões económicas; quer guardar algum dinheiro. Foi através de um amigo que conseguiu “arranjar lugar e trabalhar aqui”. Quando é questionado acerca do que o atrai mais na actividade, admite que nada o fascina: “desgasta muito ao nível psicológico, mais do que físico, porque se passa muito tempo, 9 horas por dia, a fazer a mesma coisa”, diz. Além disso admite que o que o “cansa mais na apanha é o vazar dos baldes para o palote”. Cada balde pesa cerca de 5kg. A experiência é nova e gratificante: “o dinheiro faz-me muito jeito”, fala acerca do primeiro ordenado, em jeito de divertimento. Quer e vai voltar no próximo ano por este último motivo e porque ficou integrado num grupo divertido de que gostou. 

A apanha da pêra rocha remonta ao ano 1836, altura em que Pedro António Rocha, proprietário de uma extensa exploração agrícola no conselho de Sintra, descobriu que possuía uma pereira diferente cujo fruto se diferenciava por ter uma característica peculiar: a doçura da pêra. Além de primar pelo sabor doce, a pêra rocha conserva-se durante todo o ano. Tem epiderme amarela-clara, polpa branca, macia-fundente, granulosa, doce, não ácida, muito sucosa e perfume ligeiramente acentuado. Os produtores que detêm, a tradição e o saber, produzem de um modo eco-sustentado este fruto delicioso.


A pêra rocha do oeste tem a designação “ Denominação de Origem Protegida” atribuída em exclusivo pela União Europeia a áreas delimitadas de produção regional com características únicas de qualidades. É resistente ao manuseamento e ao transporte (mesmo de longa distância) e possui uma grande capacidade de conservação na "prateleira", por isso, a pêra rocha do oeste é um produto adaptável aos sistemas de distribuição. Devido às suas propriedades, são baixas as perdas de sabor durante o período de conservação. A sua resistência ao manuseamento permite a utilização de qualquer tipo de embalagem. 

“Quem quer água?” – pergunta a jovem aguadeira que leva a água aos mais sedentos. O colega do lado aproveita e também bebe. A bebida provém da fonte mais fresca e é servida numa xicara de metal. Todos bebem pelo mesmo bebedouro, exceto aqueles que trazem consigo a garrafinha de água. O calor aperta e as horas insistem em alongar-se. Mas ninguém desiste.  

Gaelle Gonçalves, 24 anos, apanha pêras pela primeira vez mas fá-lo exclusivamente por motivos económicos. O momento de que gosta mais é a “hora do almoço”, diz entre risos. É da opinião de que deveria haver mais pausas durante o tempo de trabalho, “por causa do sol”. Sabe que não é fácil trabalhar “nos terrenos inclinados e ao calor”, mas, para si, o aspeto mais positivo da experiência é o de “aprender a colher bem uma pêra”. Quando é questionada acerca de um possível retorno no ano que vem, admite que só o fará se “por acaso não tiver emprego e se estiver mesmo desesperada”. À semelhança do colega João Vieira, aponta algumas sugestões para a melhoria das condições de trabalho: “mais pausas, de 5 ou 10 minutos, e borrifadores de água no ar para molhar o pessoal”.   

É preciso colher os louros do esforço 

O valor de venda e de produção das pêras diferem, mas são as grandes cadeias de supermercados as que mais beneficiam; o valor de venda ronda os 28 cêntimos e meio por kg e o custo de produção é de, aproximadamente, 25 cêntimos. José Jaime admite que os prejuízos, em períodos de crise, como os que aconteceram em 2011 e 2012, ascendem os 100 mil euros. No entanto houve uma melhoria no ano passado, altura em que “se ganhou qualquer coisa” e se este ano o preço de venda for, no mínimo igual ao do ano passado, “já se ganhava mais”, afirma o proprietário da herdade. Quando questionado acerca da possibilidade de alargar a produção, José Jaime, admite que já produz “na casa das 50 toneladas por hectare”, mas já é muito porque não há “açúcares capazes de responder a essa produção”.  
Os tratamentos pelos quais a fruta passa “andam nos 30 e muitos”, o que vale ao proprietário um gasto gastronómico: “compramos produtos a 200 euros o kg, mesmo em pequena quantidade”, explica. Admite que as peras praticamente não levam pesticidas: o período de fertilização “funciona com fusão sexual”. Em tom de finalização remata admitindo que já produz 150g de pêras por cada português. Basta, a esse valor, multiplicar 10,5 milhões para se ter uma ideia de quanto consegue produzir! 

Faltam cinco minutos para as 18h. São horas de esvaziar os baldes e de acabar de encher os palotes. Com mais ou com menos dores nas costas, nas pernas e nos braços, já Virgínia Ventura, João Vieira, André Picoto, Gaelle Gonçalves e tantos outros anseiam pelo merecido descanso. Está na hora de regressar: chegar ao armazém, despedir dos colegas e voltar a casa. O jantar não tarda em estar pronto e um duche quente vai ajudar a dormir melhor. Como uns dizem e outros pensam, são horas de dar significado à expressão: “às dez na cama os pés”. De facto o dia foi longo e as próximas horas têm de ser aproveitadas para descansar e revitalizar o corpo e a mente da melhor forma possível.

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